[manifestações de apoio] Denúncia pública é direito à autodefesa da mulher

Não estou entre as feministas que protestaram, mas estive no ato e acompanhei o escracho. Apóio a denúncia e vou esclarecer o porquê comentando alguns pontos aqui levantados pelo(a) autor(a) do texto “Feminismo de gueto”

[A forma correta de tratar isso, no meu entender, seria discutindo publicamente o problema da agressão às mulheres e o caso específico, no meio específico – ou seja, no movimento passe livre (…) Ele é uma estratégia despolitizante, sem senso de tática ou estratégia e altamente ineficaz]

Sim, um movimento deve tratar de seus próprios problemas internos quando ali estes podem ser resolvidos democraticamente. Por algumas razões isto é razoável, como não expor questões internas que desestabilizem a organização, favorecendo ataques externos.  Sobre esta primeira parte entendo que estaria correta, com um porém. A denúncia feita pelas companheiras é de que não havia sequer discussão democrática no MPL sobre agressões ou ameaças repetidas a mulheres, que o assunto era evitado, de certa forma censurado o que fazia com que casos se tornassem recorrentes. Em um estágio de sufocamento, de humilhação, desmoralização e de ameaça das vítimas, a única forma de trazer à tona o caso foi uma divulgação do caso para um círculo mais amplo de pessoas, não tendo como recorrer a ninguém dentro do movimento. Isto é, sobretudo, uma atitude de autodefesa.O escracho neste caso muito mais que um ataque é uma atitude de autodefesa das vítimas. Neste sentido não é algo sem tática ou estratégia, muito menos ineficaz. Pelo contrário, é a única maneira eficaz, que não por meios policiais, de tornar público o fato para que seja fiscalizado pelos próprios ativistas. Por isso é uma atitude de autodefesa legítima. Com a denúncia conseguiu-se abrir a discussão pública que antes não havia sobre o caso. É uma atitude altamente politizada ainda mais porque foi feita coletivamente. Denunciar o caso de maneira abstrata, sem ligar nomes ao fato, nunca geraria a mesma discussão e seria aí sim ineficaz para evitar mais agressões. Havendo suspeitos indicados previamente, as vítimas até legalmente, em caso de uma nova agressão, têm mais respaldo e estão mais protegidas. Tudo que permanece entre quatro paredes favorece o agressor (não à toa, os casos de violência contra as mulheres são principalmente os domésticos).

As companheiras também poderiam ter ido além, utilizado todos os seus direitos como comparecer à delegacia da mulher para denunciar o fato. Os mínimos direitos, mesmo vindo de um Estado opressivo, devem ser utilizados por mais que o Estado seja completamente ineficaz para baixar os índices de agressões a mulheres.

[A forma do escracho me parece fascista – não é só neste caso não, mas inclusive nos escrachos argentinos voltados para torturadores. ]

Sobre o caso argentino, este faz cair por terra o argumento da ineficácia e da despolitização. Na Argentina, ainda que de maneira limitada, torturadores estão pagando por seus crimes contra 30 mil famílias de desaparecidos, torturados e assassinados e assassinados pelo regime fascista. Considerar a “forma” do escracho como fascista é um absurdo sendo que é usada para expor aqueles que torturaram e mataram.

O que seria politizado e razoável? Fazer como no Brasil, em que militares estão no Exército, e comemoram todo ano o golpe militar, sem que nenhum seja punido por seus crimes? Em que torturadores e apoiadores do regime assassino como o Sr. Bolsonaro continuam governando e emitindo ataques fascistas, incitando neonazistas a agressões contra pobres, negros homossexuais, nordestinos? Aceitar a permanência destes sujeitos no poder é a atitude que compactua com o fascismo.

[O que incomoda é tratar disso como um caso específico, individualizado e centrado neste caso que infelizmente não é extremo]

Fica claro nas limitadíssimas discussões aqui levantadas neste site em que membros chegam a defender o agressor (Xavier), tentando caricaturizar a atitude das companheiras, chegando a alegar coisas do tipo “Mas o que vocês querem, que expulsem ele do MPL? Ele pediu desculpas”, que estes realmente não ligavam para o caso pois não eram afetados diretamente.

O que as companheiras reivindicavam antes de qualquer expulsão, era inicialmente uma discussão sobre o tema. A atitude de pessoas no MPL de mesmo com a denúncia dar “forças” ao acusado de agressões, mostra que há convictos defensores do agressor desinteressados na denúncia. Fica claro também, por ninguém ter negado as graves acusações contidas no panfleto. 
Esta denúncias eram literalmente de que “Há cerca de 6 meses um dos militantes do Movimento Passe Livre ameaçou de morte, perseguiu, constrangeu, agrediu verbalmente, insultou e limitou o espaço físico de uma companheira de movimentos sociais autônomos da cidade. E essa não foi a primeira vez”.

Ameaça de morte ou limitação do espaço físico por acaso não são atos extremos??? O que vamos esperar, que as ameaçadas sejam mortas?? Se ninguém os negou quer dizer que este era um fato conhecido e negligenciado.

Pedir desculpas não é suficiente. Qualquer um pode pedir desculpas, alegar descontrole emocional depois de matar, por exemplo. Como sabem todas as mulheres agredidas, é pratica comum dos agressores e um meio de repetir suas ações. Não podemos de modo algum dar um cheque em branco para um agressor de mulheres só porque este seria um lutador, de esquerda etc. São conhecidos vários casos de aproveitamento de mulheres dentro da esquerda (que se diz feminista) e participa dos governos opressores de mulheres, casos de agressões e abusos tanto entre os grupos como dentro mesmo destes. Já ouvi falar e presenciei casos no PSTU, Psol, PT.

[Isso não me parece uma postura política voltada para mudar o mundo, mas apenas para mudar nosso cotidiano]

Os regimes opressores pelo mundo não se encarregam diretamente de fazer vítimas. Há sempre as correntes de transmissão desta política. É o soldado norte-americano que mata o iraquiano e não Bush/Obama.

No caso da opressão contra a mulher, esta correia de transmissão é o patrão no trabalho e o homem em casa numa sociedade patriarcal. A mulher em 99% dos casos faz os serviços mais subalternos domésticos, mesmo quando esta trabalha fora. Aqui, mesmo os homens conscientes que não oprimem suas mulheres, se ganham maiores salários e se calam por isso, se dá às mulheres afazeres maiores que o seu porque é assim aceito na sociedade, acaba compactuando com esta opressão. Que dizer então de um agressor? Do que será este capaz?

Mudar o mundo é primeiro reivindicar que se mude o cotidiano, porque é nele que a mulher sofre nas mãos do sócio do inimigo principal que é o homem. Sem luta contra os que estão na primeira barricada contra os oprimidos, não se chegará nos que coordenam as tropas.

Engraçado ouvir isso de uma pessoa que vem defender o MPL, que é o movimento que lutaria contra o aumento das passagens. As passagens são cotidianas. Mas mudar o mundo é mais que mudar as passagens. Mesmo assim, como conscientizar a população se não for organizando-a para acabar com as opressões e explorações cotidianas. Outra coisa. Lutar contra um patrão, neste sentido, poderia ser considerada a individualização de um caso, despolitizada, etc, porque finalmente este não é o governo.

[Por que particularizar esse caso? Por que é do nosso meio?]

Sim principalmente. Se não se desmascarar o que acontece dentro dos grupos que se dizem libertários, como então conseguir lutar contra os opressores em geral em todo o mundo?

[Realmente causa estranheza toda essa movimentação quando um homem ameaça uma mulher no contexto de uma separação, quando fatos infelizmente muito mais graves acontecem a toda hora]

Quer dizer que porque é uma separação está autorizada a agressão? Isto sim é uma consideração despolitizada.

Os principais casos de agressão e de morte são justamente de agressão por ex-namorados ou maridos. Devemos deixar o caso evoluir para este extremo? Nunca.

Aqui deixo uns dados oficiais sobre agressões de mulheres para a reflexão de todos:

* A violência doméstica é a maior causa de ferimentos femininos em todo o mundo, e principal causa de morte de mulheres entre 14 e 44 anos. (Rel. Dir. Hum. Da Mulher da Human Rights Watch/96).

* O risco de uma mulher ser agredida em sua própria casa pelo pai de seus filhos, ex-marido ou atual companheiro é nove vezes maior que sofrer algum ataque violento na rua ou no local de trabalho (BID ” Banco de Desenvolvimento/98).

* De 10% a 34% das mulheres do mundo já foram agredidas por seus parceiros; segundo a OMS, 30% das primeiras experiências sexuais das mulheres foram forçadas; 52% das mulheres são alvo de assédio sexual. Isso tudo, sem contar o número de homicídios praticados pelo marido ou companheiro sob a alegação de legítima defesa da honra. (Organização Mundial de Saúde/2001).

* O homicídio não pode ser encarado como meio normal e legítimo de reação contra o adultério, pois nesse tipo de crime o que se defende não é a honra, mas a autovalia, a vaidade, o orgulho do senhor que vê a mulher como propriedade sua”. (Decisão do Sup. Trib. de Justiça, Brasília/91).

* “A cada 4 minutos, uma mulher é espancada no Brasil”. (Human Rights Watch ” Org. Int. Dir. Humanos/95).

* No Brasil, 70% dos casos de incidentes violentos devem-se ao espancamento de mulheres por seus companheiros; os agressores escapam de penas alegando ter agido “sob forte emoção”; e 50% dos assassínios de mulheres são cometidos por seus parceiros e há uma média de 2,1 milhões de mulheres espancadas, por ano, 175 mil por mês, 5,8 mil por dia.(Human RightsWatch./96 e Pesquisa Nacional da Fundação Perseu Abramo/2001 e revisão 2002).

* “1 mulher é espancada a cada 15 segundos no Brasil” (Fundação Perseu Abramo 2001 e revisão 2002).

* No Brasil, o ciúme desponta como a principal causa aparente da violência, assim como o alcoolismo ou o fato de estar alcoolizado no momento da agressão (mencionadas por 21%, ambas). Essas razões se destacam em respostas espontâneas sobre o que as mulheres acreditam ter causado a violência sofrida. (Fundação Perseu Abramo 2001 e revisão 2002).

* “O Brasil é um dos campeões mundiais em violência contra a mulher”. (Relat. Americas Watch/92). 
* “Apanhar dentro de casa é uma realidade para 63% das mulheres brasileiras” (Ministério da Justiça/98)

* “98% das preocupações de mulheres brasileiras são o combate à violência contra a mulher e 96% sobre o abuso sexual no trabalho”. (Revista Veja/94) 
* As classes médias(as maiores afetadas) e altas não denunciam, muitas vezes, por terem um “status” a preservar e receiam escândalos.

* Somente 1/3 das relações de violência entre os sexos é denunciado.

* Fatores inibidores da denúncia da violência conjugal/familiar: crença de que a violência é temporária, conseqüência de uma fase difícil; receio de possíveis dificuldades econômicas na ausência do companheiro; a situação dos filhos caso este tenha ficha na polícia ou fique desempregado; vergonha perante os filhos; pena do agressor que é violento “só quando bebe”; vergonha de ser vista como espancada; falta de apoio familiar; medo do agressor; sentimento de culpa; receio de ficar sozinha; falta de informações; baixa auto estima; falta de infra-estrutura e atendimento precário de delegacias gerais, especializadas ou juizados especiais e/ou descrença nos serviços prestados, dentre outros.

* Não é a toa que as mulheres permanecem, em média, de 10 a 15 anos na relação violenta.

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