ESCANCARANDO O ESCRACHO – verborragia sobre uma ação de autodefesa feminista

Descarregue o pdf escancarando o escracho

1) Um escracho é uma ação direta legítima para denunciar casos de violências machistas?

Sim. E achamos esse questionamento um dos mais importantes, o que mais contribui para a construção de formas alternativas à justiça burguesa, branca, heterossexista, estatal e capitalista. O escracho é uma forma de responsabilização pública sobre uma ação do próprio agressor. As feministas não criaram um agressor. O agressor já estava lá. O provável sentimento de humilhação decorre da atitude do próprio agressor e não da ação feminista de denuncia. Ao tornar público o fato de se tratar de um agressor machista, o indivíduo passa a responder publicamente por ser justamente isso: um agressor machista. Humilhante é ter ameaçado uma mulher de morte e achar que não se deve responder a isso publicamente.

A ideia de fazer o escracho surgiu de mulheres nos atos contra o aumento, incomodadas com a presença do agressor, que transitava nesse espaço, em ambiente de tolerância e normalidade. Diante da não-responsabilização do indivíduo e total ausência de debate público sobre o assunto, as mulheres não se sentiam seguras. Foi para mudar esse quadro que realizamos a ação. Passada uma semana, percebemos que abrimos um espaço para o debate efetivo da questão, inclusive possibilitando novas denúncias. As novas denúncias podem ser lidas no blog:

http://feministascontraoaumento.noblogs.org

Se calar sobre o assunto, ou mantê-lo privado, é continuar criando condições para que essas atitudes aconteçam, portanto é pela segurança das mulheres que a denuncia se fez. Aliás, é apenas por meio da exposição pública que as sobreviventes conseguem segurança e nesse caso não foi diferente: a sobrevivente só parou de ser ameaçada de morte quando denunciou o agressor na delegacia e conversou com pessoas de todos os espaços políticos por onde transita. As agressões, denunciadas em delegacia, foram:
1) Agressões verbais
2) Agressões psicológicas
E também:
3) Ameaças de morte
4) Invasões sucessivas de domicílio

O único caminho para proteger as sobrevivientes é quebrar o silêncio.

O que fizemos não é opressão é resistência. Opressão é a violência machista, resistência é tudo o que fazemos para combatê-la. O escracho foi uma ação direta de autodefesa que não se vale dos mecanismos instituídos em uma sociedade com a qual não concordamos e que vem sendo usada por diversos grupos políticos como formas legítimas de resistência.

Porque as outras lutas podem se valer de instrumentos de denúncia radical como o escracho e a luta feminista não? Nesse sentido, ficar discutindo a legitimidade da ação é perder a oportunidade de falar sobre o que interessa, sobre o machismo nos movimentos sociais, formas de lidar com agressores entre nós e é dar continuidade ao ciclo de violência que se instala a partir da não-responsabilização do indivíduo sobre sua agressão. É mais confortável discutir o escracho que fizemos do que encarar corajosamente os privilégios que a opressão machista sustenta.

Denunciar um agressor não é achar que apenas ele cometa esse tipo de agressão nem se esquecer de todas as outras posturas machistas de outras pessoas dentro dos movimentos socias, pelo contrário, é exatamente por entender que diversas formas de agressão em diversos níveis diferentes ocorrem o tempo todas às mulheres dentro e fora da esquerda, que agressões com essa magnitude devam ser denunciadas, para então discutirmos não apenas o caso específico, mas como as inúmeras formas de agressões ‘brandas’ e ‘sutis’ (a forma desigual como as mulheres são tratadas na militância, as vozes desiguais entre homens e mulheres nas reuniões, as inúmeras piadinhas ‘inofensivas’ que temos que engolir para manter um clima ‘amigável’, e um longo etc…) que estruturam uma lógica de pensamentos e atitudes que sustentam a possibilidade de ocorrer casos graves como o que foi denunciado. Pois essas ‘pequenas’ coisas revelam o lugar que querem colocar nós mulheres: de meros objetos; onde nossas vidas e nossa integridade física e psicológica valem menos, onde não temos legitimidade como pessoa, que não devemos pensar, questionar ou nos posicionar, devemos apenas enfeitar a mesa, suprir necessidades masculinas e quanto for conveniente sermos descartadas e destruídas. Basta!

Denunciar um militante machista é construir um movimento que pode ser partilhado por mais mulheres.

1.1) É fácil fazer um escracho?

Sim. Basta um kit de cola e cartolina (veja em anexo o nosso guia faça-você-mesma par escrachar um agressor machista). Mas denunciar uma agressão machista sempre tem um custo muito alto. Entendemos que a repressão que cada mulher sofre ao denunciar uma violência se estende automaticamente a todas as outras que, em solidariedade, contribuem para torná-la pública. E o mais assustador é ver como os argumentos que se escutam nas delegacias policiais, na tentativa de dissuadir a mulher a denunciar, são bem parecidos com aqueles que estão circulando nos dias que se seguiram ao escracho: Tratar o assunto como problema privado; alegar a destruição do núcleo familiar (nesse caso a destruição do movimento); questionar a gravidade da violência (“foram só agressões verbais e psicológicas…”); aconselhar a mulher a perdoar e a não tomar medidas “drásticas e extremas” como a denúncia… Estas são algumas das frases que cada mulher que vai à delegacia é constrangida a ouvir. E essas mesmas frases são ditas agora para convencer-nos que o escracho não é uma expressão política legítima. Denunciamos essas atitudes como mecanismos de defesa de um status quo que só quer se sustentar e que nega a possibilidade de uma mudança interna radical tirando legitimidade da denúncia para não ter que debater o assunto.

Fazer um escracho não é uma escolha nem fácil nem simples, porque expondo nossos corpos publicamente enfrentamos uma forte reação que alveja deslegitimar-nos pessoal e politicamente, reproduzindo a violência inicial que denunciamos.

2) Cabe às feministas propor uma solução para lidar com a agressão cometida?

Não. Não cabe a nós propor a forma como os movimentos sociais, no caso o movimento passe livre, deve lidar com casos de agressão machista cometidas por seus militantes. A ação que realizamos é apenas uma ação de denúncia, que torna público um caso extremo de agressão que deve ser tratado publicamente, como todos e cada caso de agressão machista que ocorrem. Deixar de denunciar cada caso de violência que nós mulheres sofremos no dia a dia e não discuti-los, um por um, publicamente, é legitimar que eles continuem acontecendo e que outras formas de violência, tradicionalmente consideradas menores pelos movimentos sociais, sejam toleradas.

A partir da denúncia um processo mais amplo e reflexivo se inicia, um processo de discussão sobre o ocorrido e, então, a busca por soluções de como lidar com esse caso específico e com cada caso que for denunciado.

É nítido para nós que só é possível encontrar uma solução para esse tipo de situação a partir de discussões amplas, públicas, coletivas, sobre o assunto, em que as opressões advindas das relações de gênero sejam tratada com seriedade e abertamente, em que haja espaço acolhedor para novas denúncias, em que cada agressão, seja física, moral, psicológica, simbólica, seja tratada individualmente, cada uma como expressão concreta da sociedade patriarcal em que vivemos, em que haja cuidado, inclusive, com formas de dar voz a quem, por ocupar diferentes posições de poder, têm diferentes possibilidade de fala.

Portanto, entregar uma solução pronta seria impedir que o movimento faça essa reflexão, ampla, coletiva, pública, em busca de soluções para lidar com a presença de um agressor machista. E que o agressor faça também esse exercício. Só quando o movimento passe livre apresentar publicamente uma solução para o ocorrido, saberemos que houve alguma reflexão sobre o assunto. Até o momento da ação esse posicionamento não havia ocorrido. Agora que o movimento foi questionado por meio de ume escracho público, o movimento se posicionou, o que entendemos ser um avanço resultante da ação. O debate feito internamente no mpl deve ser compartilhado – o que começa a ser feito – ampliado e aprofundado, para de fato cumprir o papel de tirar da esfera privada uma questão coletiva como as agressões enfrentadas pelas mulheres nos movimentos sociais e outros espaços.

Repetimos: não cabe às feministas propor uma solução e punições não nos interessam. Acreditamos num processo longo de reflexão para a transformação, um processo que passa por desconstrução das estruturas machistas internalizadas dentro de cada um/uma de nós. Essa reflexão deve ser visível e compartilhada. Um pedido de desculpas não é uma reflexão, é só um pedido de desculpas, o mais básico, mais trivial, menos reflexivo, a se fazer.

A sociedade que estamos construindo deve saber como responder a pessoas que continuam exercendo violência e opressão. Não se trata de punir, mas negar ou diminuir a existência do problema não contribui em nada com a construção de formas alternativas de justiça e convivência entre nós.

Nos negamos a denunciar o machismo apenas como um ente abstrato, seguiremos denunciando cada agressão concreta que acontece e esperamos que o agressor e o movimento passe livre proponham uma solução pública, discutida publicamente, para o assunto e não um pedido de desculpas.

3) O que o agressor militante do MPL-SP fez é agressão?

Sim. Existe uma grande dificuldade em compreender que o que o militante do MPL-SP fez foi uma agressão. Isso por que quando se fala em “agressor” a imagem que se tem é a de um monstro ou de um desajustado sádico. Entretanto, é preciso que fique nítido que em sua grande maioria os agressores de mulheres não são essas figuras estranhas ou distantes de nós. Nós convivemos com agressores, que infelizmente podem ser também os nossos amigos, os nossos namorados, maridos ou até mesmo os nossos pretensos “companheiros de luta”. Os agressores podem ser, inclusive, considerados “bons militantes”.

Mas, não é por caber no estereótipo do “bom militante”, que sabe falar bem em público, dar boas entrevistas, que tem na ponta da língua toda teoria política, que é branco, heterossexual, de classe média, universitário, que tem tendências à liderança e ao comando – ou seja, todos os atributos da masculinidade clássica –, não é por isso que não serão cobradas coerência em suas atitudes. A validade de nossas teorias se revela em nossas práticas e não o contrário. E não cobrar essa coerência é dizer para todos os agressores que basta cumprir os requisitos da “boa militância” que suas agressões passarão incólumes. É também afastar as mulheres da participação em movimentos sociais.

O que o agressor militante do MPL-SP fez é sim uma agressão machista. Esta ocorre toda vez que uma mulher se sente agredida e subjugada. Dizer que uma agressão machista só se caracteriza quando há uma agressão física é tentar ocultar todas as formas de violência sexista. O agressor militante do MPL-SP ameaçou de morte, perseguiu, constrangeu, agrediu verbalmente, insultou e limitou o espaço físico de uma mulher. O movimento feminista já nos ensinou que a violência simbólica, psicológica e moral são formas de violência sexista e precisam ser encaradas enquanto tal. Reduzir o ocorrido a uma briga “normal de fim de relacionamento”, como foi dito em entrevista por um outro militante do MPL-SP, logo depois do escracho, é dar sustentação à essa violência, é silenciar todas as sobreviventes da violência machista. O que, nem de longe, é uma medida de proteção e não colabora com a destruição das redes de opressão sexista que possibilitam as agressões.

Nenhum passo atrás, nenhuma agressão sem resposta!

Descarregue o pdf escancarando o escracho

This entry was posted in material da ação. Bookmark the permalink.